Curta Vazantes, o cinema tem de ir aonde o povo está
Muito se fala do poder transformador da arte e da educação para uma sociedade, mas, diante da amplitude da dimensão histórica, poucas vezes somos capazes de vivenciar os efeitos das sementes que plantamos. Vazantes, pequeno distrito de Aracoiaba, no maciço de Baturité, Ceará, nos mostra uma deliciosa exceção a esse fenômeno. Pouco mais de 4 mil habitantes viram suas vidas serem transformadas por um conjunto de projetos sociais e ações culturais iniciados há pouco mais de 10 anos. Um dessas sementes foi plantada a partir da inspiradora magia e ludicidade do cinema, com o nascimento da Mostra Curta Vazantes, que agora chega à sua 7ª edição.
O mês de junho, como em muitos municípios da região, é especialmente importante para o povo de Vazantes. As cerimônias religiosas juninas dividem o coração da população com os tradicionais concursos de quadrilha e, agora, com essa especial visita do cinema, que em um democrático espaço ao ar livre, ilumina a noite com as mágicas imagens projetadas para toda população. Mais que uma mostra de filmes, o Curta Vazantes é um evento, anunciado por toda cidade, esperado pelos brilhantes olhos dos jovens que encontram nos filmes janelas para outros mundos e possibilidades. Quando cai a noite vemos a crescente movimentação, os pequenos comércios se preparam para atender ao público, os moradores timidamente vão se aproximando e, pouco a pouco, a plateia vai se acomodando. Os filmes exibidos são produto de uma minuciosa curadoria, centenas de filmes de todo o mundo são submetidos à mostra anualmente, mas só alguns deles têm a honrosa oportunidade de cruzar fronteiras e tornar palpável o estado de sonho do cinema que se instala em Vazantes.
Em 1981 Milton Nascimento e Fernando Brandt cunharam o célebre verso que diz que “todo artista tem de ir aonde o povo está”. E é essa a essência que traduz a Mostra Curta Vazantes, que torna possível o impensável, construindo pontes e superando os obstáculos que cotidianamente são impostos as populações afastadas dos grandes centros. Mais que pontes, a chegada do cinema à Vazantes construiu trampolins, impulsionando e projetando sonhos de muitos daqueles jovens entusiastas da sétima arte. Além de exibir filmes, o evento reúne uma série de oficinas e atividades, apresentando aos jovens da comunidade a possibilidade de fazer, participar e contar suas próprias histórias através do cinema.
A cada edição os jovens têm contato com oficinas que, entre tantas temáticas, já apresentaram fundamentos como fotografia, maquiagem, animação, sempre a partir da ideia de uma prática orientada, ou seja, eles realizam seus próprios filmes e os projetam na mostra noturna. Se o contato com o cinema já tem toda uma aura de magia, mais encantadora ainda é a reação dos habitantes aos verem seus rostos, suas ruas, seu povo e suas histórias projetadas na tela grande, contadas por seus próprios filhos, netos, sobrinhos. Lembro-me especialmente de quão simbólico foi chegar à Vazantes e perceber que um dos filmes projetados naquela edição foi resultado não de uma prática orientada, mas desenvolvido espontaneamente ao longo dos meses que antecederam o evento, pelos próprios jovens que frequentaram a Mostra em anos anteriores. Era cristalino, ali uma semente havia germinado. E, tenho certeza de que, se outras 10 edições precisassem ser realizadas até um novo despertar como esse acontecer, a missão social e cultural do Curta Vazantes continuaria valendo a pena. Mas o árido solo de Vazantes parece ser muito fértil e, já em 2018, o documentário Leide, de João Marcos Maia – um daqueles entusiasmados jovens que, anos antes, conheceram o cinema através do Curta Vazantes – foi selecionado e projetado no 28° Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema. No ano seguinte, o jovem diretor realizou Neusa, que também circulou em festivais de âmbito nacional, inclusive fora do Ceará.
Bem mais que um espaço de exibição de cinema, a Mostra Curta Vazantes é a materialização do poder transformador da arte, da fundamental importância de sua promoção, onde quer que seja, contra todas as correntes. Os filmes de Vazantes ecoam em nossas mentes sempre alertando que há que se continuar acreditando nas transformações sociais. O cinema das grandes produções, dos milionários orçamentos de Hollywood, é agora também o cinema do João Marcos, de Vazantes, e dos muitos jovens que, como ele, ousarem sonhar através dos filmes.
Prof. Dr. Paulo Souza Professor da Escola de Comunicação da Unicap